atenção e visão
Ver mas não enxergar.
As vezes enxergamos algo sem o notar. Este singelo auto-engano neurocientífico é responsável por vários acidentes automobilísticos de acordo com estudos publicados. Mas e quando ocorre com o médico em relação ao seu paciente?
Na atualmente aclamada disciplina de neurociências existe um teste bem conhecido de atenção e visão no qual observamos em um monitor seis pessoas no meio de um estranho jogo. Umas estão vestidas de preto e outras de branco. Cada grupo tem uma bola de basquete e nosso objetivo é observar o time branco e contar quantas vezes a bola é passada entre seus jogadores. O que ocorre geralmente é que ficamos tão concentrados no movimento da bola que somente após ver o vídeo novamente, mas agora sem a intenção de contar os passes da bola, ficamos pasmos de como não enxergamos no vídeo após passado menos de um minuto do início do jogo ter entrado pelo lado direito da quadra uma pessoa vestida de gorila, ido até o centro e saído pelo lado esquerdo. Isso chama-se "cegueira da desatenção".
Atualmente no Brasil, um médico recebe por consulta entre 25 e 97 reais em média por uma consulta de um plano de saúde (IPE, UNIMED, etc.) e 10 reais em média para fazer uma consulta especializada no SUS. Na semiologia (a arte de examinar os pacientes) aprendemos que uma investigação clínica inicial deva durar em média 40 minutos. O problema é que para o médico pagar pelo menos os gastos de seu consultório para seguir trabalhando ele não poderá, por exemplo, atender 4 consultas de 40 minutos pela manhã e digamos 4 a tarde. Fazendo um cálculo simples pode ser que, além de não ter lucro, não conseguirá pagar nem suas contas de consultório, chegando em alguns casos a ter que pagar para trabalhar (desculpe o clichê). Encurralado por esta matemática e não podendo por em prática todos os passos acadêmicos que aprendeu na faculdade, a única saída é atender o máximo de pacientes no menor tempo possível ou dedicar-se somente a pacientes particulares, que paguem um valor justo pela consulta. Como grande parte da população paga planos de saúde e a outra utiliza os serviços do SUS, a opção de "viver" de consultas particulares é cada vez mais remota.
Ao final, todos saem perdendo. Saem perdendo os pacientes, pois uma consulta que dura 10 minutos, ou menos, não é suficiente para se conhecer em profundidade a queixa do paciente em todas as suas nuances (pelo menos para algumas doenças mais complexas) e muito menos poder fazer um exame físico decente que poderá indicar importante sinais diagnósticos de uma doença grave. Saem perdendo os médicos por não conseguirem colocar em prática a medicina que tanto dedicaram tempo para aprender, e, provavelmente, saem perdendo os próprios gestores, pois para compensar uma consulta de pouco tempo o médico acaba solicitando vários exames para suprir a falta de dados coletados com o paciente na consulta. Além disso, sair de uma consulta rápida com vários exames solicitados muitas vezes se configura em um antídoto enganoso do tipoi "foi rápido, mas pelo menos farei estes exames". Acredite, muitas vezes um diálogo aprofundado é mais importante do que exames de sangue". Muitas vezes o objetivo de uma triagem simples e encaminhar o paciente para um especialista, o que sobrecarrega o sistema de sáude e não é na maioria dos casos a conduta mais correta, uma vez que o problema do paciente poderia ser resolvido em grande número de casos na primeira consulta com o clínico geral.
Embora grande parte dos diagnósticos possam ser feitos sem haver a necessidade de uma anamnese e exames físicos completos, o que funcionaria para uma consulta rápida, em alguns casos, o médico foca sua atenção em identificar sinais de alerta que podem estar sinalizando uma doença mais grave. Em inglês estes sinais de alerta são os chamados red flags. Por exemplo, uma dor de cabeça do tipo pulsátil que dure 2 horas, que acometa apenas um dos lados da cabeça de uma adolescente jovem e saudável e que cause náuseas e vômitos durante a dor será, até prove em contrário, um quadro de enxaqueca, não sendo indicado nenhuma investigação adicional com exames. Por outro lado, para uma dor de cabeça de início recente (semanas) em um paciente idoso que teve uma convulsão ou uma fraqueza progressiva em um dos lados do corpo deverá ser aventada a hipótese de tratar-se de uma doença mais grave. Nesse caso o paciente tem que ser investigado com tomografia ou ressonância magnética.
O mesmo é válido para um paciente com dor lombar que desce pela perna, um quadro conhecido como lombociatalgia. Se o paciente tem somente a dor sem outros sintomas, analgésicos e antiinflamatórios serão suficientes e o paciente deve ser esclarecido sobre a benignidade do que está causando a dor, porém, se esta mesma dor estive associada a perda de força na perna afetada (o paciente não consegue levantar o pé da perna dolorida devido a fraqueza extrema neste pé), este paciente tem que ser prontamente avaliado por um neurocirurgião, pois isso indica que a raiz nervosa está em sofrimento e precisa ser descomprimida (uma hérnia de disco geralmente é a causa) com cirurgia.
Existem vários sinais de alerta e cada área da medicina tem os seus sinais clássicos. A medicina, porém, não é uma ciência exata, não é matemática, e muitas vezes se basear somente nos red flags iremos falhar, pois a doença pode se manifestar com sintomas mais sutis que seriam reconhecidos somente mediante anamnese e exame físico mais detalhados. Como o tempo da consulta é exíguo, o médico não irá enxergá-los pois estará focado em reconhecer os sinais de alerta (que é o que o tempo permite), tratar o sintoma do paciente e passar para o próximo.
Algumas vezes o problema está em nossa frente, escondido atrás de um exame físico ou de uma conversa mais detalhada com o paciente, mas não o enxergamos por estarmos focados demais no tempo exíguo que temos para resolver o caso, que na melhor das hipóteses será a busca dos sinais de alerta. Embora seja um passo importante e vital, nem sempre funciona. Infelizmente, vivenciei isso da pior maneira.
Quando cheguei dos Estados Unidos de um pós-doutorado em neurocirurgia o primeiro trabalho que consegui foi em minha cidade natal. Isso já faz 15 anos. Uma cidade de 20 mil habitantes no interior do Rio Grande do Sul. Teria que ir uma vez a cada 2 semanas para avaliar em um dia 30 pacientes com sintomas neurológicos selecionar os casos potencialmente neurocirúrgicos. (há vários anos mudei esta conduta e atendo um paciente por hora em meu consultório em Porto Alegre)
Mas como fazer isso?!. Como atender naquela época 30 pacientes em 1 dia. Teria que traçar uma estratégia. A solução que me pareceu mais racional era identificar os sinais de alerta de doenças graves nos primeiros minutos da consulta e, dependendo do caso, concluir a consulta rapidamente prescrevendo uma medicação para tratar os sintomas do paciente ou avançar e se aprofundar no problema. Já nas primeiras consultas pude perceber que metade dos casos era de crianças que estavam indo mal nos estudos por não prestarem a atenção na escola e estarem tirando notas baixas e que tinham sido encaminhadas, a maioria pela mesma professora (que afirmava que elas deveriam ter algum problema no cérebro), para um neurologista que tinha uma clínica de eletroencefalograma, (por sinal, um exame que se sabe não é necessário em casos de problemas de aprendizagem). Incrivelmente todas as crianças que consultei chegaram com esta história e trazendo o exame com um resultado que poderia dizer acusatório de que o exame revelava "alterações das ondas cerebrais" e que isso seria responsável pela dificuldade na escola, tendo sido prescrito medicação psicotrópica, geralmente remédios potentes com potenciais efeitos colaterais. Um crime! Pois a discreta melhora que algumas mães alegavam, além do efeito placebo acredito, era que a criança estava um pouco mais calma. Claro, estes são os efeitos colaterais sedativos deste tipo de medicação. O problema era puramente educacional e não neurológico. Embora fosse lamentável o que estavam sofrendo as crianças desta escola , estas consultas levavam somente o tempo de suspender a medicação e afirmar para o pequeno pacientezinho, já com a auto-estima abalada pelo resultado do eletro, de que seu cérebro era normal, que ela era inteligente e que deveria estudar mais, ao que a maioria respondia com um tímido sorriso, acredito que de alívio.
Outras consultas eram casos típicos de dor de cabeça, dor lombar não complicada e muitos outros com sintomas de ansiedade. Como estes casos não tinham red flags eram liberados em 15 minutos, embora eu compartilhasse com o paciente um olhar de "sinto muito pelo curto tempo da consulta", mas tenho que priorizar os mais graves. Reservei aproximadamente entre 30 e 45 min de consulta para um paciente com sintomas de doença de Parkinson que não tinha uma apresentação típica, e que teria que ser encaminhado para um subespecialista. Outros 40 minutos para uma adolescente com sintomas hormomais causados por um tumor de hipófise. Para ela expliquei que com o tratamento clínico após investigação hormonal o tumor provavelmente desapareceria. Usei mais uma hora para convencer um paciente com uma tomografia com o laudo de hérnia discal lombar de que esse não precisaria operar e colocar parafusos na coluna, como haviam dito para ele (somente um em cada dez pacientes com hérnia de disco precisam cirurgia) e outra hora para um paciente com uma mononeuropatia (doença que atinge um nervo), encaminhando ele para uma investigação completa.
Esta foi uma manhã dia de trabalho que saí frustrado. E aqueles pacientes que relatavam somente sintomas ansiosos? Talvez somente os ter escutando por 30 minutos ou mais traria mais alívio do que somente dizer, "entendo seu sofrimento, mas até prove em contrário o senhor não tem nenhuma doença neurológica e está liberado" ou "procure um psicanalista". As crianças que retirei os psicotrópicos? Gostaria muito de ter telefonado para a professora e conversado com ela. Mas não dava tempo, tinha que retornar para porto alegre ainda a noite, pois iria ajudar um colega em uma cirurgia no outro dia.
Porém o sentimento de não ter feito o melhor desaparecia quando eu me dava conta de estar naquele local. Por um lado, toda aquela cultura do povo gaúcho do interior que vivenciei em minha infância estava ali novamente intocável (inclusive alguns personagens eram os mesmos, só que 25 anos mais velhos). Fiquei realizado ao ver pacientes pilchados, uns senhores idosos que haviam trabalhado com o meu falecido avô, rever o início da estrada de terra que levava a fazenda de meu avô. Escutar de um paciente que a dor era "nos quartos e que descia pela picanha" o que para mim era mais preciso do que se ele tivesse falado lombocitalgia ou, melhor ainda, o senhor pilchado que estava preocupado com umas dores de cabeça e desejava que eu solicitasse uma "pornografia cerebral" em um clara referência a tomografia e um "fax do cérebro" querendo dizer um eletroencefalograma.
O melhor de tudo porém, ainda estava por vir. Era no intervalo do almoço que minha alegre avó me esperava sempre com um banquete em sua casa. Geralmente carne de ovelha feita no fogão de lenha. Enquanto eu saboreava aquele gosto de infância ela continuava na cozinha preparando "doces de verdade" para eu levar para porto alegre. Enquanto mexia a colher de pau na imensa panela com os figos ela me disse que estava com um desconforto abdominal e uns calafrios , mas achava que era uma gripe que estava por vir. Após o almoço ela foi ao banheiro e disse que achava que tinha comido algo estragado e que iria deitar. Ficamos conversando nos últimos minutos antes de eu retornar para o hospital e acabar os atendimentos. Como neto prestativo, antes de sair medi sua pressão, que estava normal e apalpei, percuti e auscultei seu abdômen, tudo normal. Sem red flags!
Retornei para o posto de saúde e após mais 6 horas de atendimento retornei para me despedir de minha avó. Ela estava bem, mas se sentia enjoada. Disse-me que com uma dose de "Epocler" os sintomas iriam passar. Meus tios foram a casa dela e levaram também um clínico geral com especialização em geriatria para avaliar o caso, pois eu estava indo embora. Peguei os figos, me despedi calorosamente de todos e peguei a estrada. Antes de sair discuti o caso com o geriatra que tinha ido vê-la e concluímos não se tratar de nada mais grave, sem red flags. No outro dia a noite meu tio ligou para dizer que minha avó estava internada por estar um pouco sonolenta. Telefonei para o médico que disse que o hemograma estava com infecção e que uma ecografia tinha encontrado uma alteração no rim, devendo tratar-se de uma pielonefrite. O abdômen continuava sem alterações. Fiquei tranqüilo pois os antibióticos já estavam sendo administrados.
Na manhã do dia seguinte meu tio ligou dizendo que minha avó estava com um quadro torporoso, quase em coma e com queda da pressão arterial, piora dos resultados dos exames de sangue e com a barriga muito inchada. Em medicina chamamos esse quadro clínico de choque séptico, algo muito grave. A caminho do hospital já senti em minha face algumas lágrimas que denunciavam o pior.
"Mas o abdômen estava normal e não havia os chamados sinais de alerta". A ausência de red flagspoderia dever-se ao fato dela ser idosa e o achado na ecografia era certamente uma casualidade, ou seja, não tinha relação com aquele quadro clínico sombrio. Já no Hospital em Porto Alegre, vi quando o cirurgião geral abriu o abdômen e um cheiro fétido preencheu a sala e pode-se observar que todas as alças intestinais estavam necrosadas, um quadro compatível com infarto mesentérico também conhecido como colite isquêmica, uma grave doença devido a obstrução das artérias que levam sangue para os intestinos. O infarto mesentérico corresponde ao infarto do coração, porém nos intestinos. A cirurgia foi muito bem executada, mas no noite seguinte ela faleceu de choque séptico.
Embora os colegas da UTI da Santa Casa de Porto Alegre me consolassem dizendo que o diagnóstico era muito difícil de se fazer , pois a suspeita clínica deve ser alta e os sinais muitas vezes são obscuros e que, mesmo quando diagnosticado antes da cirurgia, a mortalidade é alta, fiquei estarrecido de como eu devia pelo menos ter aventado esta hipótese, não só em qualquer paciente idoso, mas principalmente por ser minha avó.
Não seguir o método médico, que exige tempo e dedicação a cada caso, fez eu me questionar que medicina é esta na qual todos os livros que estudei, todas as síndromes e doenças que memorizei (e estudo avidamente até hoje), incluindo isquemia mesentérica, não estavam tendo seu método colocado na prática. Como eu não pude ver algo que estava em meu campo de visão? Poderia eu não ter visto o gorila entrando no campo de visão por estar simplesmente focado em reconhecer algum sinal de alerta? Sei que o caso de minha avó era muito grave bem como sei que talvez mesmo tendo a suspeita, o diagnóstico com exames de imagem desta doença muitas vezes é impreciso. Mas a questão essencial é: com o tempo cada vez mais curto que o médico deve dedicar a consulta médica devido aos mais variados tipos de "pressões de mercado", diagnósticos vitais certamente deixarão de ser feitos em alguns casos. A medicina não é uma ciência exata e muitas doenças não serão reconhecidas mesmo pelos melhores médicos, porém isso não é justificativa para uma conduta baseada somente em reconhecer os sinais de alerta durante uma rápida consulta. Isto é: a consulta não pode ser rápida. Acho que o desfecho de minha avó não teria sido diferente, mas meu raciocínio médico na ocasião, bem como de meus colegas do caso, foi falho.
Dr Gustavo rassier isolan
Médico Neurocirurgião
CRM 28493.
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