SÃO GABRIEL WEATHER

João Eichbaum

Acima dos acasos, o talento

No dia 13, semana passada, quando na imprensa mundial ainda repercutiam espasmos histéricos pela morte da rainha Elisabeth, como se ela fosse o plasma vital da humanidade, e a imprensa de Porto Alegre parecia movida a orgasmos múltiplos, anunciando uma gaúcha como presidente do STF, deixava a vida Jean-Luc Godard.

Godard foi um sujeito bem nascido. Veio ao mundo na encantadora Paris e viveu na paradisíaca Nyon, que se espelha no azul celeste do lago Léman, na região suíça de La Côte. Nada a ver com aquela Londres de cara sempre enfarruscada, encardida, onde nasceu a rainha Elisabeth. Nada a ver também com o lugar onde nasceu dona Rosa Weber: uma Porto Alegre que se orgulha das águas sujas do Guaíba.

A rainha, por ser filha de rei, não cursou universidade. Estudou em casa, com uma governanta. Dona Rosa Weber cursou Direito em Porto Alegre e prestou concurso para juíza do trabalho. Passou grande parte da vida decidindo sobre férias, salários, horas extras, despedidas justas e injustas, esses direitos que levam qualquer trabalhador a cansar o traseiro, levando chá de banco, nos corredores da dita Justiça do Trabalho. Por mercê da Dilma, a referida senhora foi parar no STF. Agora preside aquele tribunal, graças a um sistema de rodízio, que o cordão dos puxassacos considera sinônimo de "honroso mérito".

Já Godard entrou para a vida cultural por outra porta: a da Sorbonne, onde estudou etnologia. Seu mergulho nesse ramo da antropologia, que abrange formação e características sociais e culturais de sociedades antigas e modernas, não poderia ter melhor laboratório do que o Quartier Latin, onde vicejam, em iguais proporções, a boemia e a cultura parisiense.

Godard, segundo os críticos, ultrapassou os limites estéticos da arte cinematográfica, sendo um dos criadores da "Nouvelle Vague", sucessora do neo-realismo italiano. Seu desdém pelo cinema americano o levou a dar de ombros para a cerimônia que lhe entregaria um "Oscar" honorário. Provocador, romântico, crítico contumaz da sociedade e, por isso, insistentemente controvetido, produziu e dirigiu o filme "je vous salue, Marie", a Ave Maria em francês. O sarcasmo, como não podia deixar de ser, mexeu até com o Papa. E num país cuja Constituição prescreve que "não haverá censura prévia", o filme foi proibido. Acontece que nesse país, a segurança jurídica não passa de uma gangorra, dependendo do peso de quem está numa das pontas, e juízos e tribunais há que fazem da Justiça um genuflexório, para se ajoelharem perante bispos, arcebispos e cardeais.

Jean-Luc Godard morreu em Rolle, perto do lugar onde viveu, na Suíça. Sorte dele ter a cidadania daquele país, verdadeiramente democrático, onde eutanásia é direito. Lá, o Estado não é proprietário da vida dos cidadãos. Esses, os cidadãos, mantenedores do Estado, têm o direito de serem por ele respeitados. Atormentado por dores, em razão de várias patologias, sem ter motivos para continuar frequentando a face da terra, Godard desistiu da vida, usando do direito de se dar o último suspiro, assistido por quem o amava.

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