SÃO GABRIEL WEATHER

João Eichbaum

As linhas tortas do destino mudam histórias

Ele foi um daqueles meninos para quem, nos ermos das colônias italianas, nos  tempos áureos da Igreja Católica pós-inquisição, se ofereciam vagas de padre. O maior sonho dos pais, contaminados até às entranhas pela crença religiosa, era a vocação sacerdotal de um filho. Consideravam-na uma graça, uma bênção, um prêmio da loteria dos céus.
Então, quando naqueles confins comparecia um padre, sob o pretexto de benzer a família, a casa, as plantações, em troca de algum dinheirinho para a Igreja, era inevitável a pergunta do reverendo aos meninos: "quem quer ser padre"?
Sempre havia pelo menos um menino, que levantava a mão, assertivamente.
Bastava uma visita anual do padre a esses celeiros de futuros sacerdotes, para lotar seminários menores e pré-seminários com meninos que não tinham a menor noção da vida, além do trabalho da roça. E enquanto suas funções biológicas não começassem a cobrar do corpo um comportamento adequado às exigências da natureza, os meninos iam ficando por lá. Rezavam, frequentavam missa diariamente, jogavam bola, gastavam neurônios nas declinações do latim e na acentuação do grego e assim iam levando a vida. Até que as glândulas de reprodução exigissem deles o que o regulamento do seminário não ensinava.
Aí, a maioria, suficientemente alfabetizada, seguia por outros caminhos, que não os da roça, nem os do altar. Mas, o temor de causar decepção aos pais, ou de dar parte de fraqueza,  mantinha lá uns poucos, na esperança de que a oração, os retiros espirituais, a ordenação sacerdotal e a embriaguez da glória pusessem cobro às exigências da natureza.
Ele foi um dos que ficaram. Teve que enfrentar um tropeço inesperado: a convocação para o serviço militar. Por descuido dos padres, que não cumpriram os protocolos necessários para a isenção daquela obrigação, foi compelido a trocar a batina de noviço pela farda de soldado raso. Passou um ano limpando banheiros, ouvindo piadas indecorosas, respondendo a ordem unida, montando e desmontando fuzis, rastejando no lodo, e passando por toda a espécie de tortura nas manobras. Mas, retornou para o noviciado, crente de que Deus o chamava para as fileiras do sacerdócio. Trocou aqueles males pelas renúncias exigidas no serviço do Senhor. Foi ordenado sacerdote.
Suas qualificações levaram a congregação a enviá-lo para a França, a fim de se doutorar na Sorbonne. Então aconteceu o inesperado: sua vocação sacerdotal, que resistira às cruezas do serviço militar, foi apagada pelo amor.
Que lutas travou para renunciar às promessas feitas a Deus, em troca do amor de uma mulher, só ele soube. E a glória sacerdotal lhe abandonou a alma, porque as sensações do amor não ficam só  no corpo.
Mas, no campo de batalha das lutas  pela vida, o amor perdeu sua eternidade. Anos depois, a rotina da velhice se tornou a sala de espera da morte. E no último ato vieram os distúrbios neurológicos, que o deixaram numa casa geriátrica, onde morreu, sob os céus de Paris, sem ter certeza de que lá o receberia Deus.

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