SÃO GABRIEL WEATHER

João Eichbaum

Terminologia rica não casa com vernáculo pobre

O senhor Fachin, cujo nome é ajoujado aos substantivos "ministro" e "excelência", começa assim o relatório da decisão que acaba anulando os processos do senhor Lula: "Trata-se de questão que agora vem de ser exposta no habeas corpus impetrado em 3.11.2020 em favor de Luiz Inácio Lula da Silva, no qual se aponta como ato coator o acórdão proferido pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça... no ponto em que foram refutadas as alegações de incompetência do Juízo"...
Quem não está habituado a ler textos da área jurídica talvez não atine com a falha grosseira nessa redação de um suposto "relatório". Mas a advogados, por menos experiência que tenham, ocorrerá a embascada pergunta: questão? Como, assim, questão? Que tipo de "questão" será essa? Será um novo procedimento judicial? Só se for novo, parido por lei feita hoje, porque no sistema processual brasileiro até ontem não existia qualquer procedimento com o nome de "questão".
Ora, isso é primário. O primeiro item que se exige num relatório é deixar claro de que se trata, o que vai ser relatado. Numa prova de redação seria reprovado quem o omitisse. No direito, é usual dizer "trata-se de ação disso, daquilo, mandado de segurança, habeas corpus", etc, tudo com "nomen juris" próprio. Ou, seja: usa-se terminologia jurídica para dar nome à "questão" relatada.
O texto se afoga no fundo da obscuridade, quando Fachin diz que se trata de "questão que agora vem de ser exposta no habeas corpus impetrado em 3.11.2020"... Vejam: a questão está sendo exposta "agora", num habeas corpus impetrado no dia 3 de novembro do ano passado. Então fica assim: o habeas corpus foi ajuizado no ano passado, mas a questão "vem de ser exposta agora". Entenderam?
Para engrossar mais o caldo dessa confusão, consta no tópico da decisão: "EMB. DECL. NO HABEAS CORPUS 193.726 PARANÁ". Daí se conclui que o relatório é sobre "embargos declaratórios" em habeas corpus. Quer dizer que o senhor Fachin está votando em procedimento de "embargos declaratórios" de habeas corpus, "no qual se aponta como ato coator o acórdão proferido pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça".
"Ato coator" o acórdão? Ninguém ensinou ao senhor Fachin que "acórdão" é um substantivo inanimado e que seres inanimados não podem praticar ações, ou seja, "agir"? E que o "ato" é obra de quem age?
Tudo fica mais enrolado na parte conclusiva: "concedo a ordem de habeas corpus para declarar a incompetência da 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba"... Declarar? Em habeas juiz não declara nada; ordena a soltura do réu, tranca ou anula o procedimento. Simplesmente assim.
A terminologia jurídica é rica porque traduz o sentido apropriado das palavras. O emprego da linguagem usual, máxime na expressão acadêmica, é o que sustenta o Direito como ciência. É por aí, e não ciscando sinônimos no dicionário, que se exibe cultura jurídica.
Moral da crônica: o saber jurídico pressupõe domínio do único instrumento de trabalho que ele exige: o vernáculo.

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