SÃO GABRIEL WEATHER

João Eichbaum

Efeitos colaterais do Covid

E agora, depois desse pé no traseiro, para onde vou? Você não pensou nisso, antes de me mandar embora? Você não pensou que pandemia é tempo de congraçamento, embora não seja tempo de ajuntamento, de aglomeração, de festerê? Que pandemia é tempo de se irmanar, para evitar os efeitos deletérios do isolamento? Que a pandemia dá mais tempo pra gente se amar, curtindo o amor, ao invés de dar uma rapidinha, apenas para se livrar do compromisso, ou tirar o atrasado?
E agora para onde vou eu? Você bem sabia que, antes de tudo isso que aí está, depois de qualquer briguinha, depois de qualquer arranca-rabo por motivos fúteis, porque seu vestido estava muito baixo em cima ou muito alto em baixo, ou porque você estivesse maquiada demais, ou porque minha barba estivesse mal feita... Enfim, por essas coisas tolas de cada dia, você sabia que eu saía de casa e ia para o bar, curar meu medo de ser corneado, aliviar a minha fúria, ou repensar meus maus modos. Você sabia disso.
E agora, para onde vou eu? Bar fechado, cortinas abaixadas, nem as cadeiras empilhadas em cima das mesas dá pra ver. Para quem vou desabafar, dizer, meio chorando, que estou atravessando uma crise no relacionamento? Parar o primeiro que encontrar na rua, um mascarado qualquer, que pode ser um travesti, ao invés da loira que aparenta, e dizer que estou precisando desabafar? Assim, como se o mundo estivesse acabando, me negando uma saída, e eu surtando?
E agora, para onde vou eu? Ao invés de me esconder naquela mesinha de canto, onde sempre me escondia para ver e não ser visto, enquanto bolinava com o dedo os cubos de gelo afundados no uísque, pensando na vida e suas respectivas soluções, onde? Onde, se aquela mesinha agora tem cadeiras empilhadas em cima dela, o bar é um templo de silêncio, sem tilintar de copos, sem dedos estalando, chamando o garçon, sem gargalhadas de bêbado, sem gente de pé esperando lugar, sem fila no banheiro?
E agora, para onde vou? Onde vou "disponibilizar" minha intimidade para mim mesmo, como se fosse outro me ouvindo? Ah, o bar, o único lugar onde eu podia me empanturrar de amendoim, entre um uísque e outro, distraindo o pensamento e o olhar, com coisas fúteis e úteis, como panturrilhas bem torneadas ou traseiros exuberantes, ou o visual caprichado para disfarçar os ubres caídos! Onde vou hospedar minhas angústias, sempre aguardando as soluções que vêm do coração, porque da razão não se pode esperar nada, numa hora dessas? Onde? Onde, se o governador e o prefeito me despejaram do bar e a minha mulher me despejou de casa, onde vou procurar asilo para minha solidão?
E agora, para onde vou eu? Como vou me decidir? Antes só, do que mal casado? Ou me comportando como adulto bem resolvido, e não como criança mimada, que só sabe chorar?
E agora, onde posso me livrar de mim mesmo, para me reconciliar com você?

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